Retorno do voto de qualidade no Carf: um grave erro de prioridades

Por Willer Tomaz 
08/07/2023 | 07h00
5 min de leitura

Voto de minerva viola a segurança jurídica, os princípios administrativos, o devido processo legal e o próprio DNA do órgão

Alvo de críticas ostensivas, o voto duplo, de qualidade, ou de minerva no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), que dá à Fazenda o poder de desempatar os julgamentos de processos administrativos envolvendo a apuração e a cobrança de tributos, teve a sua aplicação afastada pelo art. 19-E da Lei n. 10.522/2002, incluído pela Lei n. 13.988/2020.

A nova lei prevê que em empates no julgamento de processos administrativos de determinação e exigência de crédito tributário não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.

Mesmo com os esforços dos legisladores que conduziram à nova sistemática, o Governo Federal publicou em 13/1/2023 a Medida Provisória n. 1.160/2023, a qual restabeleceu o instituto ao prever no art. 1º que na hipótese de empate na votação no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o resultado do julgamento será proclamado na forma do disposto no § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972.

Isto é, de cambulhada, ressuscitou-se o voto de qualidade no Carf, o que levou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e dois partidos políticos a ajuizarem as ações diretas de inconstitucionalidade n. 7.347/DF e 7.353/DF no Supremo Tribunal Federal (STF), distribuídas ao ministro Dias Toffoli.

Em 4/5/2023, a previsível caducidade da MP n. 1.160/2023 em 1º/6/2023 levou o Governo Federal a apresentar na Câmara dos Deputados o PL 2.384/2023 para, dentre outros, restabelecer o voto de qualidade. A proposta tramita em regime de urgência.

Na última segunda-feira (3), o relator da proposta na Câmara apresentou parecer preliminar pela aprovação da reintrodução do voto de desempate com uma nova roupagem costurada em negociações entre a OAB e o Ministério da Fazenda, iniciadas após a propositura da ADI n. 7.347/DF no STF. Na linha do acordo, o voto de desempate seria então acompanhado da exclusão de multas e juros de mora em caso de julgamento favorável à Fazenda, bem como do cancelamento da representação fiscal para fins penais.

A despeito das renúncias recíprocas para se atingir uma solução intermediária, o fato objetivo é que o voto de minerva no Carf viola a segurança jurídica, os princípios administrativos republicanos, o devido processo legal e o próprio DNA do órgão, forjado na ideia de paridade entre a Fazenda e o contribuinte.

Nota-se que o PL n. 2.384/2023 tem por principal justificativa a alegação de que o modelo paritário provocou a reversão do entendimento do tribunal em grandes temas tributários e favoreceu indevidamente o contribuinte, fazendo com que cerca de R$ 59 bilhões (cinquenta e nove bilhões de reais), por ano, deixarão de ser recolhidos.

Ocorre que inexiste – por isso não foi apontada na justificativa – a alegada reversão, nem a efetiva perda de receita. Muito pelo contrário, as estatísticas do próprio Carf revelam que a regra não favoreceu os contribuintes, pois houve desempate automaticamente favorável àqueles em apenas 1,3% dos julgamentos entre 2020 e 2022.

Os mesmos dados mostram que no período de aplicação (2020 a 2022) do art. 19-E da Lei n. 10.522/2002, a média de julgamentos unânimes subiu de 76,4 (2017 a 2019) para 81,2% (2020 a 2022) ao mesmo tempo em que os julgamentos majoritários caíram de 17,2% (2017 a 2019) para 14,9% (2020 a 2022) e os votos de minerva caíram de 6,4% (2017 a 2019 para 2,6% (2020 a 2022), sugerindo o surgimento de uma postura jurisprudencial que evitava empates que poderiam favorecer automaticamente o contribuinte.

Aliás, muito se discute sobre a finalidade meramente arrecadatória do voto de desempate no Carf, sendo que dados oficiais atualizados até 27 de junho deste ano mostram que desde a vigência da MP n. 1.160/2023, 4,8% dos casos foram resolvidos com o voto duplo da Fazenda8, sendo que desses, 94,7% foram desempatados em favor do Fisco.

Tais fatos, per si, refutam a justificativa dada para o retorno do voto de minerva no Carf, mas a questão central é outra: é necessário racionalizar o sistema tributário.

Como se sabe, como sintoma de um ambiente jurídico, fiscal e burocrático truncado, o Brasil possui o maior contencioso tributário judicial e administrativo do planeta, não havendo paralelo em nenhum outro lugar do mundo: em 2018, o contencioso pendente de resolução correspondia a 50,4% do PIB nacional, equivalente a mais de R$3,4 trilhões; em 2019, correspondia a 75%, equivalente a R$5,44 trilhões. Piorando as perspectivas, o desfecho desses litígios demora em média 18 anos e 11 meses, segundo dados de 2017.

No ranking mundial dos sistemas tributários mais complexos, segundo o Global MNC Tax Complexity Project, integrante do Deutsche Forschungsgemeinschaft (DFG, German Research Foundation), entre os 100 países pesquisados, em 2016 o Brasil ocupava a 100ª posição, ou seja, era o país com o sistema tributário mais complexo do mundo. Em 2018, dos 58 países pesquisados, o Brasil estava na 55ª posição. E em 2020, entre os 69 países observados, ocupava a 60ª posição, estando assim sempre no pântano da mais alta complexidade tributária.

Em 2019, o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que há graves disfunções estruturais inerentes ao sistema tributário e disfunções burocráticas relativas às administrações tributárias no Brasil, com riscos atrelados aos procedimentos necessários ao cumprimento das obrigações tributárias, com impacto negativo no ambiente de negócios e na competitividade das organizações produtivas, gerando potencial de prejudicar o desenvolvimento nacional14.

No mesmo ato, o TCU reconheceu que a Receita Federal está sempre a editar grande quantitativo de normas tributárias e a atualizá-las com frequência, o que sabidamente cria riscos afetos aos procedimentos necessários para preparar, declarar e pagar tributos federais, necessitando-se adotar-se medidas para orientar os contribuintes acerca das inovações obrigacionais trazidas por essas normas – o que na prática não acontece. Inerente à complexidade do sistema e à natural dúvida sobre a correção da exigência ou do montante de tantos tributos a recolher, o peso da carga tributária é um fator de estímulo ao litígio, pois força o contribuinte a buscar alívios contra a expropriação excessiva do seu patrimônio.

Ou seja, o alto grau de litígio não é a causa, mas, sim, o sintoma de uma realidade causada pela legislação e pela própria administração tributária e fiscal, criadoras de um ambiente hostil para o contribuinte e para o setor produtivo.

Eis que as justificativas do PL n. 2.384/2023, assim como da MP n. 1.160/2023, são genéricas, rasas e ignoram a necessidade premente de uma profunda reforma do sistema, que pressupõe, por sua vez, uma transformação de mentalidade sobre a solidariedade tributária, sobre a burocracia, sobre as dinâmicas comerciais, sobre a geração de riqueza e sobre o peso da carga fiscal.

Com efeito, a discussão sobre o voto de desempate é infrutífera e míope, uma vez que erra gravemente na avaliação das prioridades e trata (e muito mal) tão somente o sintoma (litígio), ignorando-se completamente a necessidade de racionalização do sistema tributário, deixando assim de sanar os reais entraves para o crescimento econômico do país e para o cumprimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, inscritos no artigo 3º da Constituição Federal.

*Willer Tomaz, sócio do escritório Aragão & Tomaz Advogados Associados

Artigo publicado no Estadão: ACESSE AQUI


Juiz das garantias: uma garantia do processo penal acusatório

Por Willer Tomaz 
21/06/2023 | 09h00
4 min de leitura

Por meio da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o legislador federal alterou profundamente o artigo 3º do Código de Processo Penal e criou a figura do “juiz das garantias”, estabelecendo, em síntese, que o juiz que atuar na fase de inquérito não pode atuar na fase de instrução e julgamento.

A norma estava prevista para entrar em vigor em 23 de janeiro de 2020, mas às vésperas, duas liminares dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, suspenderam por 180 dias e por tempo indeterminado, respectivamente, a eficácia da lei em relação ao novo instituto, voltando o tema ser debatido somente agora em junho de 2023, no julgamento das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, onde são questionados, dentre outros: (i) inaplicabilidade da norma no âmbito do Tribunais; (ii) a inexequibilidade por ausência de estrutura suficiente no Judiciário para a sua implementação e funcionamento regular; (iii) vício de iniciativa por caber aos Tribunais a proposta, tendo em vista a necessidade de alteração das leis de organização judiciária respectivas e de criação de novos cargos; (iv) inconstitucionalidade e desproporcionalidade quanto à eficácia imediata da lei; (v) violação ao regime fiscal por ausência de previsão orçamentária para os impactos financeiros.

A questão é tão complexa que o Conselho Nacional de Justiça editou a Portaria CNJ n. 214, de 26 de dezembro de 2019, instituindo Grupo de Trabalho para estudar os efeitos e impactos da aplicação da Lei n. 13.964/2019 junto aos órgãos do Poder Judiciário.

Não divergimos do ministro Dias Toffoli quanto à necessidade de implementação do juiz de garantias de modo consciente, consistente e sem criar outros gargalos para os órgãos da jurisdição e para os jurisdicionados, sob pena de se tornar um instrumento ineficaz e malvisto.

Em sua substância, não obstante, o instituto bem se harmoniza com a Constituição Federal e, dada a sua relevância em prol dos direitos básicos do acusado, urge ser colocado em prática, seja por aval do Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADIs, seja através de nova lei.

Isso porque o juiz das garantias servirá ao controle de legalidade da investigação criminal como um todo e resguardará os direitos mais elementares do acusado, dentre eles o de ser processado e julgado perante autoridade judiciária competente e imparcial, conforme preconiza o artigo 5º, incisos XXXVII, LIII e LIV, da Constituição.

No Brasil, o juiz das garantias ainda é uma novidade, embora já seja objeto do PL n. 8.045/2010, que dispõe sobre o novo Código de Processo Penal, em tramitação na Câmara dos Deputados. Mas em países como França, Itália, México e Estados Unidos, o juiz das garantias já é integrado à tradição jurídica.

Devemos lembrar que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu uma nova ordem onde o processo penal deixou de ser mero procedimento de concretização do jus puniendi e passou a ser verdadeiro instrumento de salvaguarda de direitos e de preservação da liberdade (STF, HC 162650, Rel. Min. CELSO DE MELLO, j. 21/11/2019).

Noutro ângulo, o processo penal possui diversas fases com escopos distintos, não sendo condizente que o juiz do inquérito, que decretou prisões e determinou medidas cautelares de natureza pessoal ou real com espeque nos elementos unilaterais da acusação, seja exatamente o mesmo juiz responsável pela posterior instrução e pelo julgamento da causa.

É que, segundo da psicologia social, o ser humano é naturalmente inclinado à chamada “dissonância cognitiva”, fenômeno estudado desde a década de 1950 e que consolidou um movimento psicoterapêutico baseado nos métodos de redução da dissonância a partir da pesquisa pioneira de Leon Festinger, professor de psicologia social da Universidade de Stanford.

De acordo com a Teoria da Dissonância Cognitiva, a pessoa busca a validação das suas crenças e ideologias ainda que a realidade se revele contrária, tendo em vista o estado de desconforto e tensão diante da contestação (FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Trad. Eduardo Almeida. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. 249 p.).

Com o julgador não é diferente, já que ele está sujeito a falhas e vieses ao se valer de heurísticas, ao agir e raciocinar para solucionar problemas e tomar decisões, sendo que, a exemplo, “há flagrante dissonância quando o julgador, em sede de cognição sumária, ao analisar uma medida de urgência, faz um juízo positivo da probabilidade do direito alegado, mas depois, no juízo de cognição exauriente, constata que não existe o direito afirmado. Mesmo que o primeiro juízo tenha sido de mera probabilidade (e não de certeza), o magistrado, dependendo da hipótese, sentirá certo desconforto por ter reconhecido a plausibilidade de um direito inexistente” (ANDRADE, Flávio da Silva. A tomada da decisão judicial criminal à luz da psicologia: heurísticas e vieses cognitivos. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 507-540, jan./abr. 2019).

Nesse sentido, o juiz que impôs medidas gravosas na investigação tenderá à necessidade íntima de confirmação dos seus pronunciamentos anteriores, prejudicando a sua imparcialidade na condução do processo, ainda que de forma inconsciente.

Ademais, como já alinhavamos em opinião publicada no Conjur, sob o título “República da inquisição: o casamento ilícito entre Estado-juiz e Estado-acusador”, temos um claro exemplo na Operação Lavajato, que embora tenha combatido o crime organizado, demonstrou para quem tem olhos o quão facilmente a função de julgar pode ser perder na de acusar, implicando a ruína das garantias fundamentais do investigado.

Na situação acima, a violação ao devido processo legal se deu graças à ausência de controles eficazes contra a quebra do dever de impessoalidade e imparcialidade do magistrado, quem atuou em todas as fases do processo e acabou por partilhar de interesses do Ministério Público, mediante ajuste da melhor estratégia para a acusação.

Como remédio, o instituto do juiz das garantias tem exatamente o objetivo de resguardar a imparcialidade do julgamento e de salvaguardar os direitos dos acusados em geral ao mitigar a dissonância cognitiva naturalmente presente no comportamento humano, bem como desvios éticos e de consciência, voluntário e involuntários por parte do julgador.

A bem da verdade, só militam contra o instituto questões de ordem financeira e formal, pois o juiz das garantias fortalece os princípios do devido processo legal e do juízo natural, humaniza e assegura o processo penal acusatório, aperfeiçoa o sistema de justiça e atende as mais variadas cartas de direitos humanos das quais o Brasil é signatário.

*Willer Tomaz, sócio do escritório Aragão & Tomaz Advogados Associados

Lei iguala apenado primário e reincidente genérico condenados por crime hediondo

Por Willer Tomaz

A progressão de regime no cumprimento da pena sofreu profundas alterações pelo pacote anticrime (Lei 13.964/19) e ainda gera confusão nos tribunais quanto aos crimes hediondos, por vezes resultando interpretações in malam partem ou mesmo in bonan partem indevidamente, até por parte do Ministério Público.

Foi o que aconteceu recentemente, em maio de 2023, em uma execução penal onde um apenado que já havia sido condenado anteriormente por crime comum cumpria pena de 32 anos e um mês em regime fechado por homicídio. Na origem, o juízo executório negou a aplicação do percentual de 40% sobre o tempo da pena para a progressão de regime e impôs o de 50%.

Quando a questão chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) através de Habeas Corpus (HC 778476/SP, relator ministro Joel Ilan Paciornik, T5, j. 30/5/2023), o Ministério Público Federal opinou pela concessão da ordem para que fosse aplicado o percentual de 40%, quando o correto era 50%.

Precisamos lembrar que o chamado Pacote Anticrime revogou expressamente o artigo 2º, §2º, da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90). Com isso, a progressão de regime nos crimes hediondos passou a ser regida exclusivamente pela Lei de Execução Penal (LEP —  Lei nº 7.210/84).

Ocorre que a LEP também teve o seu artigo 112 modificado pela Lei nº 13.964/19, que introduziu novos critérios e lapsos para a progressão de regime, criando um quadro mais complexo sobre a benesse legal.

Em matéria de delito hediondo, a Lei dos Crimes Hediondos exigia o cumprimento de 40% da pena para o apenado primário progredir de regime, e de 60% para o reincidente, sem distinguir entre reincidente específico e genérico.

Já a lei do pacote anticrime instituiu percentuais de 40%, 50%, 60% e 70% para os casos de crime hediondo, com base não apenas na hediondez, mas também no caráter da reincidência e no resultado do crime: se a reincidência é genérica, aplica-se determinado percentual; se específica, outro percentual; se do crime não resulta morte, aplica-se um percentual; se resulta morte, incide outro percentual.

O imbróglio é que a lei acabou criando uma anomalia jurídica, qual seja, o tratamento igual para condenados reincidentes genéricos e primários, relativamente à progressão de regime nos crimes hediondos.

Comparando-se os dois sistemas, na regra antiga, tratando-se de crime hediondo, bastava a reincidência genérica para que a progressão de regime dependesse do cumprimento de 60% da pena. Agora, na regra atual, tanto o apenado primário quanto o reincidente genérico sentenciado por crime hediondo precisam cumprir apenas 40% da pena, ou de 50% se do novo crime resultou a morte da vítima. Os percentuais de 60% e 70% ficaram restritos ao reincidente específico em crime hediondo, sendo o patamar de 60% aplicável aos casos sem resultado morte, e o de 70% aplicável aos casos com resultado morte.

Isso porque o artigo 112 da Lei de Execução Penal passou a exigir o cumprimento da pena em caso de crime hediondo nos seguintes percentuais: 1) 40% para apenado primário (inciso V); 2) 50% para apenado primário, se do crime resultou morte (inciso VI, “a”); 3) 60% para apenado reincidente específico em crime hediondo sem resultado morte (inciso VII); e iv) 70% para apenado reincidente específico em crime hediondo com resultado morte (inciso VIII).

Em uma leitura atenta, percebe-se que a lei regrou as mais variadas situações de apenados primários e reincidentes específicos, mas, por outro lado, foi omissa quanto ao percentual aplicável aos casos de reincidentes genéricos, condenados anteriormente por crime comum e posteriormente por crime hediondo com e sem resultado morte.

Foi exatamente esse o objeto do Tema 1.084, decidido em maio de 2021 pela 3ª Seção do STJ em sede de recursos especiais repetitivos (REsp 1918338/MT, relator ministro Rogerio Schietti, S3, j. 26/5/2021, e REsp 1910240/MG, relator ministro Rogerio Schietti, S3, j. 26/5/2021).

Na ocasião, o STJ firmou a tese de que “é reconhecida a retroatividade do patamar estabelecido no artigo 112, V, da Lei nº 13.964/2019, àqueles apenados que, embora tenham cometido crime hediondo ou equiparado sem resultado morte, não sejam reincidentes em delito de natureza semelhante”.

O STJ entendeu que “evidenciada a ausência de previsão dos parâmetros relativos aos apenados condenados por crime hediondo ou equiparado, mas reincidentes genéricos, impõe-se ao Juízo da execução penal a integração da norma sob análise, de modo que, dado o óbice à analogia in malam partem, é imperiosa a aplicação aos reincidentes genéricos dos lapsos de progressão referentes aos sentenciados primários”.

E assim o STJ concluiu que “ainda que provavelmente não tenha sido essa a intenção do legislador, é irrefutável que de lege lata, a incidência retroativa do artigo 112, V, da Lei nº 7.210/1984, quanto à hipótese da lacuna legal relativa aos apenados condenados por crime hediondo ou equiparado e reincidentes genéricos, instituiu conjuntura mais favorável que o anterior lapso de 3/5 [60%], a permitir, então, a retroatividade da lei penal mais benigna”.

Com efeito, por aparente erro do legislador, o reincidente genérico passou a ter o mesmo tratamento do apenado primário condenado por crime hediondo tanto sem resultado morte quanto com resultado morte: “uma vez que os percentuais de 60% e 70% foram destinados aos reincidentes específicos, a nova lei deve ser interpretada mediante a analogia in bonam partem, aplicando-se, para o condenado por crime hediondo, com resultado morte, que seja reincidente genérico, o percentual de 50%, previsto no inciso VI do artigo 112 da Lei de Execução Penal”. (STJ, HC 778476/SP, relator ministro Joel Ilan Paciornik, T5, j. 30/5/2023).

Essa é a ratio ignorada pelo Ministério Público Federal ao opinar erroneamente pela aplicação do percentual de 40% para a progressão de regime ao reincidente genérico condenado por crime hediondo com resultado morte.

Vemos, portanto, que o pacote anticrime, visando recrudescer o tratamento à criminalidade violenta, acabou por igualar a primariedade e a reincidência genérica relativamente à progressão de regime nos crimes hediondos ou equiparados, aplicando-se o mesmo lapso temporal para a progressão em ambas as situações, de 40% (se não resultou morte) e 50% (se resultou morte), cenário mais favorável que o antes vigente sob a égide da Lei dos Crimes Hediondos.

Artigo Completo publicado em: https://www.conjur.com.br/2023-jun-19/willer-tomaz-incoerencias-pacote-anticrime